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Pedro Jailson
Autista, TDAH e cofundador da Clínica terapeuTEAr

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“Se for assim, todo mundo é um pouco autista”.

Uma Análise Aprofundada de um Mito Perigoso

 

 

A frase “todo mundo é um pouco autista” tornou-se surpreendentemente comum nos últimos anos. À primeira vista, pode parecer uma tentativa bem-intencionada de expressar empatia ou normalizar o autismo. No entanto, esta afirmação não apenas é incorreta do ponto de vista científico, como também pode ser prejudicial para a comunidade autista. Neste artigo, vamos mergulhar profundamente nas razões pelas quais essa ideia é problemática, explorando a complexidade do Transtorno do Espectro Autista (TEA) e por que é crucial entender sua verdadeira natureza.

 

 

Comunicação Social: A Complexidade Além da Superfície

 

O que muitos confundem:

Muitas pessoas equiparam as dificuldades sociais do autismo com experiências comuns de timidez, introversão ou ansiedade social. No entanto, a realidade é muito mais complexa e impactante.

 

A realidade autista:

• Dificuldades Persistentes e Significativas: As pessoas autistas enfrentam desafios constantes em iniciar, manter e compreender interações sociais. Isso vai além de simples desconforto social; é uma dificuldade fundamental em decifrar as regras não escritas da comunicação social.

 

• Teoria da Mente: Muitos autistas têm dificuldades com a “teoria da mente”, a capacidade de atribuir estados mentais a si mesmo e aos outros. Isso pode resultar em desafios para entender as intenções, emoções e perspectivas dos outros.

 

• Comunicação Não-Verbal: Interpretar e utilizar linguagem corporal, expressões faciais e tom de voz pode ser extremamente desafiador. Um autista pode não perceber sutilezas como sarcasmo ou insinuações, levando a mal-entendidos frequentes.

 

• Reciprocidade Social: A dificuldade em manter uma conversa bidirecional, compartilhar interesses de forma recíproca ou ajustar o comportamento de acordo com diferentes contextos sociais é uma característica marcante.

 

• Impacto nos Relacionamentos: Essas dificuldades podem levar ao isolamento social, problemas em formar e manter amizades, e desafios em relacionamentos românticos.

 

• Impacto nos Ambiente Profissional: No trabalho, pode resultar em dificuldades de trabalho em equipe, mal-entendidos com colegas e desafios em entrevistas de emprego ou networking.

 

• Impacto nos Saúde Mental: A constante luta para navegar um mundo social que parece operar com regras invisíveis pode levar à ansiedade, depressão e baixa autoestima.

 

 

Padrões Repetitivos de Comportamento: Muito Além de Simples Preferências

 

O que muitos confundem:

É comum as pessoas associarem isso a simplesmente gostar de rotina ou ter certos hábitos. No entanto, para autistas, a questão é muito mais intensa e impactante.

 

A realidade autista:

• Necessidade Intensa de Previsibilidade: Autistas frequentemente têm uma necessidade profunda de manter rotinas específicas. Alterações, mesmo pequenas, podem causar níveis significativos de estresse e ansiedade.

 

• Comportamentos Repetitivos (Estereotipias ou stims): Conhecidos como “stimming”, esses comportamentos (como balançar, girar objetos, ou movimentos repetitivos das mãos) servem como mecanismos de autorregulação e podem ser cruciais para o bem-estar emocional.

 

• Interesses Restritos e Intensos: Muitos autistas desenvolvem interesses extremamente focados e intensos em tópicos específicos. Esses interesses vão além de hobbies casuais, podendo dominar o tempo, as conversas e os recursos do indivíduo.

 

• Inflexibilidade Cognitiva: Dificuldade em mudar de uma tarefa para outra ou adaptar-se a novas situações. Isso não é teimosia, mas uma verdadeira dificuldade neurológica em processar e se adaptar a mudanças.

 

• Impacto na Rotina Diária: A necessidade de seguir rotinas específicas pode limitar severamente a espontaneidade e a capacidade de lidar com imprevistos.

 

• Impacto no Ambiente de Trabalho/Escola: Mudanças inesperadas na programação ou no ambiente podem ser extremamente perturbadoras, afetando o desempenho e o bem-estar.

 

• Impacto nas Relações Sociais: A rigidez comportamental e a intensidade dos interesses podem criar barreiras na interação social e na compreensão mútua.

 

 

Processamento Sensorial Atípico: Uma Experiência de Mundo Fundamentalmente Diferente

 

O que muitos confundem:

Muitas pessoas associam isso a simplesmente ter preferências sensoriais ou ser “sensível”. A realidade para autistas é muito mais intensa e impactante.

 

A realidade autista:

• Hipersensibilidade: Muitos autistas experimentam estímulos sensoriais com intensidade aumentada. Sons comuns podem ser dolorosos, luzes normais podem ser ofuscantes, e texturas podem ser insuportáveis.

 

• Hipossensibilidade: Alguns autistas podem ter uma resposta reduzida a estímulos sensoriais, podendo não perceber dor, temperatura ou a necessidade de ir ao banheiro.

 

Processamento Sensorial Alterado: O cérebro autista pode processar informações sensoriais de maneira diferente, levando a experiências únicas e muitas vezes desafiadoras do ambiente.

 

Sobrecarga Sensorial: A incapacidade de filtrar estímulos irrelevantes pode levar a uma sobrecarga sensorial, resultando em estresse extremo, ansiedade, shutdown ou meltdown.

 

Impacto na vida diária -  Ambientes Públicos: Lugares como supermercados, shoppings ou restaurantes podem ser extremamente desafiadores devido à quantidade de estímulos sensoriais.

 

Impacto na vida diária -  Alimentação: Sensibilidades a texturas, sabores ou cheiros podem levar a dietas extremamente restritas.

 

Impacto na vida diária - Vestuário: Certas texturas de roupas ou etiquetas podem ser insuportáveis, limitando as opções de vestuário.

 

Impacto na vida diária - Sono: Hipersensibilidade a sons ou luz pode causar problemas significativos de sono.

 

 

A Natureza Espectral do Autismo: Por Que “Um Pouco Autista” Não Faz Sentido

 

 

O Espectro Autista:

• Variabilidade: O autismo se manifesta de maneiras extremamente variadas. Dois autistas podem ter perfis completamente diferentes.

• Gravidade do sintomas: Os prejuízos vão de pequenos a incapacitantes, afetando diferentes áreas da vida em diferentes graus.

• Comorbidades e Condições Coexistentes : Muitos autistas também têm condições coexistentes como TDAH, ansiedade, depressão ou epilepsia, adicionando camadas de complexidade.

 

Por Que “Um Pouco Autista” é Problemático:

• Diagnóstico: O diagnóstico de autismo requer a presença de múltiplos critérios com impacto significativo na vida diária. Não é uma questão de ter “alguns traços”.

• Experiência Vivida: Simplificar o autismo a alguns traços comuns ignora a experiência vivida de autistas que enfrentam desafios significativos diariamente.

• Suporte Necessário: Minimizar o autismo pode levar à falta de reconhecimento da necessidade de suporte e acomodações.

 

 

O Perigo da Banalização: Consequências Reais de um Mito

 

Impacto no Diagnóstico:

• Subdiagnóstico: A ideia de que “todos são um pouco autistas” pode levar a que sinais reais de autismo sejam ignorados ou minimizados.

• Diagnóstico Tardio: Especialmente em adultos e mulheres, essa crença pode contribuir para diagnósticos tardios, privando indivíduos de suporte necessário por anos.

 

Impacto no Suporte:

• Negação de Acomodações: Se o autismo é visto como algo que “todos têm um pouco”, as necessidades reais de acomodações no trabalho ou na educação podem ser negadas.

• Falta de Compreensão: Pode levar a uma falta de empatia real com os desafios enfrentados por autistas.

 

Impacto Psicológico:

• Invalidação: Para autistas, ouvir que “todos são um pouco autistas” pode ser profundamente invalidante, minimizando suas lutas diárias.

• Mascaramento: Pode aumentar a pressão para “mascarar” sintomas, levando a burnout e problemas de saúde mental.

 

 

Conclusão:

 

A frase “todo mundo é um pouco autista” pode parecer inofensiva ou até mesmo empática à primeira vista, mas ela mascara a complexidade e a realidade vivida por indivíduos autistas. O autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento complexo que afeta profundamente múltiplos aspectos da vida, desde a comunicação social até o processamento sensorial e o funcionamento executivo.

 

Reconhecer a verdadeira natureza do autismo não significa criar divisões, mas sim promover uma compreensão mais profunda e empática. Isso permite que ofereçamos o suporte adequado, criemos ambientes mais inclusivos e valorizemos genuinamente a neurodiversidade.

 

A verdadeira empatia não vem de tentar equalizar todas as experiências, mas de reconhecer, respeitar e apoiar as diferenças únicas de cada indivíduo. Ao fazer isso, não apenas apoiamos melhor a comunidade autista, mas também enriquecemos nossa compreensão da diversidade da experiência humana.

 

Lembre-se: você não precisa ser “um pouco autista” para ser um aliado efetivo. O que realmente importa é a disposição de aprender, compreender e apoiar, respeitando as experiências únicas dos indivíduos autistas.

 

 

Texto escrito por: Pedro Jailson.
 
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